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Olá, 
 
Eu sou o Augustto Ribeiro, artista nascido e criado em Santana do Araçuaí, no coração do Vale do Jequitinhonha, norte de Minas Gerais, onde a arte, além de ofício, é parte da identidade de quem nós somos.
Desde criança, a argila foi a minha grande companheira — eu a reencontrei ao nascer. Em cada uma das peças que crio, carrego um pedacinho da minha história, da minha ancestralidade e da cultura do nosso rico Vale do Jequitinhonha.
 
Gosto de brincar que nasci em um berço de barro e criatividade, no mundo encantado das bonecas. Quando eu cheguei ao mundo, Dona Izabel, nossa mestra, já tinha criado esse maravilhoso universo das bonecas, reescrevendo a história do nosso povo com beleza e superação.
Desde muito pequeno, eu ficava fascinado. Cada boneca parecia ter vida própria; era surreal a conexão que eu já sentia mesmo acabando de chegar.
Aos quatro anos de idade, modelei minha primeira bonequinha, usando as sobras de argila que caíam das mãos da minha mãe, Alice, e da minha tia, Ana.
Enquanto outras crianças brincavam com carrinhos ou bonecas de plástico, eu preferia criar os meus próprios brinquedos. O barro sempre foi meu brinquedo favorito, minha liberdade para brincar com o que quisesse modelar. Foi assim que tudo começou: na paixão, na conexão, na curiosidade, na imaginação e no silêncio cheio de significado dos ateliês dessas grandes mulheres.
 
Estava sempre empolgado acompanhando minha tia Ana a cada nova aula no ateliê de Dona Izabel, onde ela aprendia a modelar as cabeças das bonecas, sob o ensinamento cuidadoso e paciente da mestra — e lá o meu mundo parava, o tempo passava de outra forma. Eu lembro que ficava encantado com a força que cada boneca transmitia. Parecia que elas estavam se comunicando comigo de alguma forma. Até hoje não sei como colocar isso em palavras, mas algo parecido acontece agora quando minhas bonecas me olham de volta. Acho que é a magia e a sensibilidade que nossa arte consegue transmitir.
 
Logo, aprendi que tudo de que precisávamos era da nossa imaginação e do barro que a nossa própria terra nos dava. A transformação da matéria era — e segue sendo — a nossa expressão. Eu não tinha muito domínio técnico, mas, para brincar, não existem regras: só precisava ser intuitivo e deixar fluir, como a própria Izabel sempre dizia.
 
Com o passar dos anos, aquelas pequenas figuras foram crescendo junto comigo. Com quinze anos, eu já estava fazendo bonecas grandes, marcando um novo momento na minha trajetória. Um dos momentos que acho muito especial foi quando modelei uma boneca de idosa, inspirada na minha avó Sinhá, amiga da Dona Izabel. Esse gesto despertou muitas conexões afetivas com as pessoas, por trazer traços mais marcados e que contam sobre a passagem do tempo na vida, através das clássicas bonecas.
 
Hoje, sigo pesquisando e criando. Meu trabalho une a força da tradição e da ancestralidade do Vale com meu olhar contemporâneo. Minhas bonecas trazem detalhes modernos — como olhos delineados, cílios postiços, cores vibrantes, cabelos cheios e expressões faciais detalhadas — sem perder a essência da história que me trouxe até aqui.
Quero sempre contar a nossa história, a dos nossos ancestrais, e também a minha visão enquanto artista traduzindo o presente, que foi construído com muita garra por todos que vieram antes. Entendo que sou a continuidade de uma linda história que transformou dificuldades de sobrevivência em afeto e beleza.
Gosto de acreditar que cada peça é uma extensão da minha imaginação e também da memória coletiva do meu povo. Ao mesmo tempo, carrego o desejo de celebrar a liberdade atual, a aceitação e a capacidade de sonhar, mesmo quando tudo um dia pode parecer difícil.
 
Dona Izabel foi uma estrela generosa que iluminou o caminho de todos que estiveram perto dela, compartilhando seu conhecimento com simplicidade e paciência. Eu tive a sorte de crescer cercado por mulheres que me ensinaram a criar com as mãos e com o coração. Até hoje, muitas vezes me pego olhando para as minhas próprias bonecas do mesmo jeito que fazia quando criança, e mal consigo acreditar que saíram das minhas mãos e dos torrões de barro que a gente mesmo tira do chão.

Augustto Ribeiro, modela suas bonecas desde os 4 anos de idade, no Vale do Jequitinhonha
Augustto Ribeiro, modela suas bonecas desde os 4 anos de idade, no Vale do Jequitinhonha
Augustto Ribeiro, modela suas bonecas desde os 4 anos de idade, no Vale do Jequitinhonha
Augustto Ribeiro, modela suas bonecas desde os 4 anos de idade, no Vale do Jequitinhonha
O Vale do Jequitinhonha

 

O Vale do Jequitinhonha é uma terra que, durante muito tempo, foi vista apenas pela lente da pobreza e da escassez. Mas quem nasce aqui conhece outra história: a história de um povo que transforma o chão seco em cor, poesia e resistência. Localizado no nordeste de Minas Gerais, o Vale cobre uma área imensa, com mais de 85 mil km² e dezenas de municípios espalhados entre serras, rios e longos períodos de estiagem. Antes da invasão dos europeus, esse território era lar de diversas nações indígenas, muitas delas invisibilizadas ou perseguidas. Com o passar dos séculos, também foi espaço de exploração mineral, escravidão e abandono político, até se tornar, no imaginário popular, um retrato da dificuldade.

 

Mas mesmo diante de tantas perdas e desafios, o Vale nunca deixou de ser fértil em cultura e criatividade. As técnicas de transformação da natureza em arte — o barro, o algodão, a madeira, as fibras vegetais — foram passadas de geração em geração, como quem passa um segredo precioso. Até os anos 1970, a região permanecia quase sem estradas, rede elétrica, escolas ou serviços básicos. A economia era sustentada pelo pequeno cultivo, pela criação de animais e, principalmente, pelo fazer artesanal. Mãos humanas erguiam casas, moldavam utensílios de barro, construíam portas, bancos e fogões. Cada objeto nascia da necessidade, mas também de um profundo senso de pertencimento.

 

A partir da década de 1970, políticas públicas como a criação da CODEVALE trouxeram novos caminhos. O artesanato do Vale começou a viajar o Brasil, sendo levado a feiras, exposições e mercados em Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo. Foi nesse movimento que as moringas bonecas de Izabel ganharam outros significados: deixaram de ser apenas objetos de uso doméstico e se tornaram símbolo de destaque cultural, encontrando dignidade mesmo nas condições mais difíceis, trazendo beleza e genialidade.

 

Essa força coletiva se espalhou, trazendo autonomia para muitas famílias como fonte de sustento, para uma vida com mais dignidade através da arte local de alguns polos pelo território.

Hoje o Vale segue sendo  referencia na cerâmica nacional, marcada pela beleza e sustentabilidade das belezas criada pelo seu povo.

Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais
Izabel Mendes da Cunha Ceramista Vale do Jequitinhonha
Dona Izabel Mendes da Cunha


Dona Izabel com toda certeza, é uma daquelas pessoas que parecem ter nascido para abrir caminhos e mudar a historia de vida de todo um território. Filha de lavradores, nasceu em Córrego Novo, zona rural de Itinga, em 1924-2014. Herdou de sua mãe, Dona Vitalina, o conhecimento antigo de transformar o barro em utensílios que garantiam a sobrevivência da família: panelas, potes, moringas.
 
Ainda menina, ela já moldava pequenos pedaços de barro que pegava enquanto a mãe trabalhava. Daquelas mãos pequenas surgiam brinquedos simples: boizinhos, panelinhas, bonequinhas. Naquele tempo, ter uma boneca de plástico era algo impossível para uma criança do Vale do Jequitinhonha. Ela contava que sonhava em ter uma boneca comprada, mas que nunca soube o que era brincar com uma. Foi desse desejo guardado que nasceu a vontade de criar suas próprias bonecas — feitas do barro que a terra dava.
 
Com o tempo, casou-se, mudou-se para Santana do Araçuaí, teve quatro filhos e, muito cedo, se tornou viúva. Para sustentar a casa, percorreu longos quilômetros carregando louça na cabeça ou no lombo de burros, vendendo sua produção à beira da rodovia Rio-Bahia.
 
Foi assim, entre o trabalho árduo e a imaginação, que Dona Izabel se tornou mestra de si mesma. Inspirada pelas formas das moringas e dos filtros de água, começou a criar grandes bonecas que contavam histórias do cotidiano: mães, noivas, mulheres de feições fortes e olhar distante, figuras que pareciam guardar algo de todas nós. Com seu talento, transformou objetos de uso diário em esculturas que hoje habitam museus, livros e coleções pelo Brasil e pelo mundo.
 
A oficina que mantinha, anexa à casa, era um lugar de simplicidade e generosidade. Ali, usando apenas facas antigas, sabugos de milho, gamelas de madeira e pincéis improvisados, modelava peças com paciência e inventividade. Aos que perguntavam como aprendeu, ela respondia: “Eu me ensinei”. Mas, na verdade, ela ensinou muito mais gente: vizinhas, filho, filhas, amigas — como minha mãe e minha tia — que encontraram na cerâmica uma forma de autonomia e de afeto.
 
Dona Izabel foi reconhecida em vida como uma das maiores artistas da cerâmica popular. Recebeu o Prêmio Unesco de Artesanato para a América Latina e Caribe, a Ordem do Mérito Cultural do Brasil e teve suas obras estampadas até em selos dos Correios. Mas talvez seu maior feito tenha sido esse: mostrar que, mesmo nas condições mais duras, é possível criar beleza e dignidade com as próprias mãos.
 
Eu tenho orgulho de dizer que fui moldado, também, pela luz dessa mestra generosa. Cada boneca que faço carrega um pouco da sabedoria dela, que nos ensinou que o barro não é só matéria — é memória, é possibilidade, é história viva.

Izabel Mendes da Cunha Ceramista Vale do Jequitinhonha
Izabel Mendes da Cunha Ceramista Vale do Jequitinhonha
Augustto Ribeiro, modela suas bonecas desde os 4 anos de idade, Izabel Mendes da Cunha
Augustto Ribeiro, ceramista do Vale do Jequitinhonha, herdeiro dos ensinamentos da Dona Izabel Mendes da Cunha
Augustto Ribeiro, modela suas bonecas desde os 4 anos de idade, no Vale do Jequitinhonha
Torrões de terra, cores que trazem beleza as belas bonecas do ceramista Augustto Ribeito, no Vale do Jequitinhonha
Minha técnica


A técnica que aprendi vem de Dona Izabel e de muitas gerações antes dela. É um jeito de trabalhar que une paciência, memória e liberdade. Embora existam etapas que se repetem — como o preparo do barro, a modelagem, a secagem, a pintura e a queima — cada artista cria seu próprio caminho entre essas etapas.

 

Dona Izabel costumava dizer que a técnica não era uma receita pronta. Ela mesma foi aprendendo no gesto, experimentando, errando, inventando soluções com os poucos recursos que tinha. Modelava as peças apoiadas sobre uma gamela de madeira com uma tábua por cima, criando um torno simples que permitia girar a boneca devagar, enquanto observava cada detalhe. Usava facas antigas, sabugos de milho, pedaços de coité, trapos e o que mais estivesse à mão. Tudo isso virava extensão da imaginação dela.

 

Esse modo de criar foi sendo passado para outras mulheres — e depois para mim — como um conhecimento vivo que cada um adapta à sua maneira. A técnica é, ao mesmo tempo, aprendizado e intuição. Existe uma base comum que nos conecta, mas também existe o espaço para a personalidade de cada artista aparecer no traço, no formato, na pintura e no acabamento.

 

No meu processo, tudo começa na escolha do barro. Retiro a argila do quintal da minha avó ou das terras dos vizinhos, respeitando o tempo da terra e a forma como ela quer ser retirada. Depois, faço a limpeza e preparo o material até que ele chegue no ponto certo de modelagem.

 

Durante a criação, uso ferramentas simples herdadas dessa tradição: facas pequenas para marcar detalhes, sabugos de milho para alisar, trapos para dar textura e as mãos para sentir cada curva. Nossa maior ferramenta são as mãos e a imaginação. 

 

As cores que uso vêm da terra. Preparo a tinta da terra com pigmentos naturais que recolho na região — Toás, Tabatinga e outras argilas. Costumo misturar três ou mais tipos até chegar no tom que procuro. Quando aplicadas sobre a peça seca, essas tintas já carregam vida, mas é só depois da queima que mostram sua cor definitiva. O fogo faz a parte dele: transforma, revela e às vezes surpreende.

 

A queima acontece em um forno a lenha, que leva cerca de 12 horas para chegar a 800 graus. Quando abro a fornada, sinto uma alegria que vem lá da infância: é o momento em que cada boneca se revela por inteiro.

 

Manter essa técnica intacta é meu compromisso com o passado e meu modo de criar algo novo no presente. Cada peça que sai das minhas mãos traz, junto, o respeito por quem veio antes e a certeza de que o barro sempre pode contar outras histórias.

© 2035 por Pedro Castro.

Augustto Ribeiro ceramista do Vale do Jequitinhonha 

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